terça-feira, 15 de março de 2016

Apresentação do Livro de Danilo Barcelos, a ser aprovada pelo Editor

Verter voragens: a poética de Danilo Barcelos

Conheci  Danilo Barcelos duas vezes. A primeira foi em 2000, um rapaz ainda muito moço, a cursar a disciplina de Teoria da Literatura, na Universidade Federal de Ouro Preto. Não chamava a atenção unicamente pelo porte e simplicidade, mas também pela excelência de sua produção acadêmica. Também sua disposição para auxiliar o grupo do Centro de Estudos Literários Luso-brasileiros era notável, e ,em tais tarefas esbanjava simpatia, com seu jeito de menino crescido por demais e muito cedo. De resto, não se diferenciava em nada dos colegas de turma. Nesse tempo, jamais me apresentou texto qualquer, para uma avaliação, como faziam tantos outros. Talvez por não se achar pronto para isso (como se um dia estejamos prontos), talvez por timidez.
`                              Conheci Danilo pela segunda vez em 2015, quando nos reencontramos virtualmente, na internet. Subitamente, ele me enviou um anexo denominado Tear de Ondas. Pasmo, espanto, prazer me tomaram imediatamente. O que via diante de mim era um texto pronto e publicável, e, mais do que isso, uma experiência de leitura absolutamente nova.
 Durante anos, comentávamos, o Prof. Marcus Vinícius de Freitas e eu, que a poesia brasileira estava carente de uma radical renovação. Uma nova sintaxe, uma nova forma, um conteúdo renovador. E, de repente, anos depois, vindo de alguém inesperado, eu estava diante de tudo aquilo que preconizávamos. Tear de Ondas não se limita a um exercício de imagens. O texto ondula em consonância com o campo semântico que evoca. Aquilo que poderia acabar em simples melopeia, rompe com a lógica de boa parte da poesia atual, que busca em estados mentais modificados um cantar ilógico e imprudente.
Não. Aquilo que eu via era uma superfície textual fluente e notavelmente agradável ao ouvido, flutuando e correspondendo ao com o oscilar de um mar de palavras. Como verdadeiro tear estético, entretecia um emaranhado de discursos, com tal habilidade, que às vezes deixávamos de estar conscientes de que aquilo que líamos era algo escrito com segurança, arquitetado com maestria, fazendo uso das mais finas técnicas literárias. Ali estava um exemplo perfeito da renovação que procurávamos.
Mas, pareço me esquecer de que não é Tear de Ondas que apresento. Nada disso, a obra de um autor está intrinsicamente relacionada a outras, especialmente quando são muito próximas esteticamente, ou rompem com um padrão. No caso de é corpo seu norte, Danilo Barcelos faz ambas as coisas e volta à poesia com o que tem de melhor em recursos fônicos, mas avança sensivelmente com uma sintaxe enlouquecida, mas estranhamente bela e um uso de imagens completamente renovador. é corpo seu norte, assim mesmo, em minúsculas, parece provocar ou demonstrar como se realmente faz  poema maiúsculo. Como já disse, há muito, nós, os mais velhos, procuramos uma sintaxe, que os novos tentam, mas nada mais fazem que repetir  22.  Danilo a encontrou, como demonstra intensamente este pequeno trecho: “ assentar uma casa quando não mais/e/perceber que a casa é um rio inteiro.” Outros exemplos mais radicais pululam pela obra.
O texto é curto, mas denso, quase enigmático, ao mesmo tempo preciso nas metáforas. Desdenha de quase todos os recursos da poética tradicional para criar algo seu. Profundo e ao mesmo tempo fluente. Trata-se de um livro de um poema só, mostrando uma maturidade imensa, não somente para sua idade, como também para seu contexto. é corpo seu norte  é ouro puro, um exemplo de que nem tudo ainda foi feito na Literatura Brasileira. Destaca-se na comissão de frente da nova poesia, especialmente em um momento em que a mesma tem andado muito prosaica.  Danilo Barcelos  é algo diferente, como se palavras soltas e fluidas saíssem de sua boca, mas de forma ora conjuntiva, ora disjuntiva, mas sempre reflexiva: um pensar sobre si mesmo e sobre os outros. Textos assim muitas vezes soam insólitos, ou pouco trabalhados por falso poeta, desconhecedor do que realmente é poesia. Mas não nos esqueçamos que o autor é doutor em literatura. Em condições semelhantes, são poucos seus pares, e cito como exemplo Dirlenvalder Loyolla, que também está no prelo da Editora Kazuá.
Danilo Barcelos não escreve, verte palavras, jorra sentidos.  Enigmático, mas saborosamente legível, pois seus versos passeiam por temas e assuntos encontráveis em outros poetas (de seu nível, diga-se de passagem). Enigmático, mas saborosamente relido em todas as suas ambiguidades. A primeira delas diz respeito a uma dúvida, a respeito daquilo que há de se fixar em nossa memória, coisa esta que talvez nem o autor tenha uma resposta perfeitamente admissível: trata-se de uma nebulosa de reflexões, ou um intrincado desenrolar de uma lírica amorosa? A resposta seria: ambas. Isto porque um Outro se insinua no texto (já em seu título), mas não vem acompanhado de adjetivos ou portos de ancoragem que justifiquem tal interpretação, pois não é de amor que se fala, mas de corpos que se encontram  numa fala muda, feita de gestos, de encontros e desencontros. Apresenta o Outro, como um desdobramento de si mesmo, que se enrosca em lençóis amarfanhados, mas não coloca ali os indícios de uma presença que não seja sua experiência do toque, em que o interlocutor não se manifesta, identificado apenas por pronomes, no plural. Em princípio, sequer estes, mas um ambíguo “seu”:
é corpo seu norte
forte imantado
braço no escuro
e o lençol leve de culpa
que nula
paira sobre a lama suada
dos corpos amados que tombam
desfeitos
sem mais cais.

Tal citação poderia nos deixar certos de que se trata de uma lírica amorosa hermética, lúdica ou pudica. Mas outros versos nos dão uma dimensão maior do ser que divide o leito, mas sem adjetivá-lo, deslocando para coisas, objetos, que arrastam ainda mais para longe de um jargão amoroso, tornando o poema um porejar de experiências com discursos amorosos absolutamente inusuais:
é corpo seu norte
feito corte com faca de cozinha
na parte baixa da língua
onde lambe-se o nome
velho como o mundo
e ele nos engole.

Aparentemente,  um jorro de palavras que não se coadunam entre si, os versos dizem mais exatamente por isso. Não se trata unicamente de uma metáfora, ao estilo oswaldiano, mas de uma condensação delas. Vocábulos aparentemente incongruentes,alojam-se nos lugares certos e sintaticamente precisos, mesmo quando justapõe palavras diferentes ou até antagônicas numa mesma função sintática, como se nos compelisse a adentrar o poema, ao tentarmos decidir o impasse com a escolha de uma única e aparentemente disjuntiva, semanticamente. Aparentemente, pois o construto poético nos leva a uma experiência inédita, em que os sentidos se amarram quase todos, ficando fora unicamente aquilo que nunca se diz: o nome. Apenas se insinua, numa citada inicial, que parece apontar para a vogal “e”, repetidamente isolada, só, num inteiro verso. Assim usada, ultrapassa sua função de conjunção aditiva e torna-se reflexiva, pois funde versos díspares, num processo de condensação espelhada, em que a superfície irregular do espelho ao mesmo tempo reproduzisse algumas imagens e distorcesse outras.
Porém não nos esqueçamos de que a elisão de um nome é justamente enunciada já no início do poema, que, não apenas nos nega uma imagem de um segundo ser, como também implica alusivamente ao nome do poema, aparentemente incongruente:

é corpo seu norte
agulha de bússola
aponta o dentro
a fundo e fundo
no fundo que
enfim
é confuso
cheio de rotas curvas
em mapa não dedilhado.

Note-se que a repetição, apesar de estilisticamente rica, não paira aí unicamente como enfeite. Um pleonasmo a mais.  A agulha de bússola, transgredindo sua utilidade, não aponta, em verdade, Norte algum, mas volta-se para o corpo, figura central de busca, e ao invés de sugerir caminhos viáveis, aponta para o fundo, ou seja, um centro, que não marca um ponto, mas abre-se para diversas interpretações, ao encontrar rotas curvas, estas em mapas não dedilhados, ou seja, a percorrer o vazio. O Norte talvez seja o aqui e agora do encontro, em períodos que se iniciam em minúsculas e terminam em um ponto. Não haveria aí a menção de uma intensa solidão a dois, em que o Outro se fixa no corpo físico, enquanto outro se debate em um corpus mental?
Um poema iniciado em maiúsculas demarca uma autoria e a exposição de uma matéria completa. Já aquele que irrompe minúsculo, ao invés de negar uma autoria, ainda a demarca ainda mais, pois denuncia a interceptação de um fio de texto ou de discurso que pairava solto, ou abruptamente interrompido. Antes da ausência do texto em maiúsculas nada há, além de uma constelação de ideias de um poeta, ainda não enunciadas. Ao optar pelas minúsculas, Danilo Barcelos assume claramente a existência de um texto não dito, que além  de demarcar um vazio, desfia ou recolhe uma ponta solta, aqui e ali, e lhe dá continuidade.
Em “mapear o norte”, esta voz que emerge de um corte parece-nos, em princípio, pertencer ao próprio poeta, ou ao seu interlocutor, pois a temática esbarra sempre em um lírico introspectivo, que, verdadeiramente demarca uma posição. Ali está a bússola à procura do aparentemente inatingível, pois ao apontar para o fundo, deixa de possuir a função de indicar caminhos, e se faz simplesmente de um vazio que mergulha cada vez mais fundo (aliás em um belíssimo pleonasmo impregnado de assonância) e, ao invés de se transformar em um ponto, abre-se, alarga-se, já anunciando a intenção da apropriação de um discurso já pré-existente:

é confuso
cheio de rotas curvas
em mapa não dedilhado

Seguir rotas curvas e dedilhar mapas desconhecidos torna-se sua tarefa, aliás, bem demarcada em “mapear o norte”. Trata-se de uma tarefa perigosa, pois impõe sacrifícios e a vontade extrema de buscar algo que ali não está e nunca esteve:

é corpo seu norte
feito corte com faca de cozinha
na parte baixa da língua
onde lambe-se o nome
velho como o mundo
e ele nos engole.

Não preciso dizer aqui que todo poeta está em busca incessante de um nome, o Verbo sagrado que abre todas as possibilidades de atingir a plena potência da arte extrema e a perfeição estética plena. Os sacrifícios são muitos nessa caminhada, pois achá-la não depende de buscá-la no mundo, mas no próprio corpo, mutilado , no sangue que não engolimos, mas é ele que nos engole. Talvez seja uma ligeira impressão sem valor, mas vale lembrar que “engole” tem semelhança fônica com Golen, que, em forma de palavras, esteve sempre presente nos mitos criacionistas. Mas estaríamos fechando um texto que, por um lado, metalinguísticamente, busca a expressão final e perfeita de si mesma; e por outro, desloca sensações, vocábulos que remetem a um vazio de um início inexistente (a ausência da maiúscula, mas um ponto final definitivo).
Em “outrem”, Danilo Barcelos despede-se do fio que conduzia à sua trilha (ou norte) e inicia o trabalho de entrelaçar (ou melhor, tecer) fios soltos, atar pontos, enlaçar linhas de modo que elas se transforme em tecido/texto (palavras de mesma etimologia), ou talvez seja melhor utilizar textura, pois esta remete a algo mais denso, mais áspero, em seus desenhos em relevo. Nesse ponto, o poeta já nos inteirou de que a estrada será difícil. Para recuperar um nome antigo é preciso, não só encontrá-lo no corpo, no corte sob a língua, mas lançar mão de outros textos interrompidos ou cortados e lhes devolver a voz, ao, com fina agulha, entretecê-los em uma superfície linguística capaz de ser percorrida pelos mais diversos discursos. Mas a busca do poema lírico perfeito é trabalhosa e precisa de que se dispa das velhas enunciações e se busque em laços inusitados, a ponto de, às vezes, perdermos o pé e nos deixarmos levar, não somente por uma linguagem inovadora, mas por espessas neblinas de vocábulos que parecem nada dizer, mas que tomados em conjunto brilham no céu claro e aberto do papel em branco.”
“Outrem” é o início de uma viagem verbal. Tendo já escolhido seu norte, o poeta agora exerce a função do tecelão, que nela busca mais pontas soltas, prenhes de silêncios sinuosos. O Outro ainda perdura como se, em termos de “eu poético”, a bússola aponta apenas em direção do ser que faz de seu corpo seu norte. Na disjunção de seres, o poeta desembarca de um trem ambíguo, que está em movimento no ato, e parado no outono, ou vice-versa. Este “Outrem”, fora do “eu que enuncia”, que se evidenciava em pronomes e indícios, agora é falta; um trem do qual se despede, como um passageiro que se funde com o trem, pelo simples fato de ser esse, uma metáfora, carregada de componentes líricos, que não carrega chavões, mas o resultado do da relação de dois seres, da qual um agora se despede:

passageiro de mim desembarco
desse trem só movimento
no outono estacionado pleno em nada.

teço o trilho azul que segue além
ao som de um rio decomposto
coberto de anilina e falsa forma.

Metalinguisticamente, é a desconfiança no poder evocativo da palavra que se faz sentir, pois o poeta vacila (mesmo que retoricamente) em retomá-las, num descrer doloroso por antecipar a ausência de um encontro da essência lírica (busca e decepção de todo poeta, por sua inexistência) Nos versos seguintes, também, o apear do comboio se apresenta, como se discurso amoroso e poesia, nesse caso, fossem atrelados e, portanto, similares. Mas, por um pequeno detalhe, quase insignificante, isso não acontece: ao final da última estrofe, não há ponto final:
nesta casa
assento os verbos que não sei
e decanto os sons que desconheço
para saciar uma outra sede
que se entende no fim
daquilo que não tento interpretar.

saio, enfim, das palavras
para pisar o solo de mim
chão onde pouso todos os destinos

Sei do risco que corro, ao propor duas leituras simultâneas, mas creio que devo me atrever, pois o poema, como O Grito, de Munchen, exige especulações mais fundas, como aquela úvula imensa e se atrever a vir ao primeiro plano.
Nesse poema, a úvula se apresenta como ausências, silêncios. Como anteriormente fizera, Danilo Barcelos forma laços de linhas tão bem tecidos que parecem se fundir. passageiro e trem formam uma unidade. É preciso descer desse vagão, ao mesmo tempo em movimento e estacionário, para tecer novos trilhos, que devem se despedir daquilo que não o levará a nada, ou seja, o artificialismo de um rio que foi límpido um dia, mas que agora, além de decomposto, ainda traz a falsa cor, tanto quanto é falsa a forma. Reconhece no trem a peça pulsante de sentido, mas uma máquina adiada. E vai além:

condenso o trilho azul transpondo a linha
que divide o riscado das palavras
para trazer em mim o mesmo

que perdido já é falta.
na paragem deste trem, som do vazio,
soltam ao ar as folhas deste outono

lugar que marca a ida e desencontros
na constelação contrária de um lago
onde miro o que em mim é outro dia

Trilhos são palavras, que nada trarão nada a não ser a si mesmos. Neste trecho, com belíssimos enjambements, coloca-se em um outono sombrio, que ainda tem muito chão para chegar à plenitude da luz. Mas não é estação de ano de que fala, mas de um lugar, onde se encontra, onde fios se atam e desatam, mas pela ilusão do reflexo fazem-no mirar aquilo que ainda não é o agora, mas um dia vindouro. Como se pode observar, o tecelão já ata e desata imagens e metáforas, mais do que as lancinantes de Oswald, pois as mesmas em nada se ancoram em um mundo externo, mas criam nebulosas de sentidos, que nos levam a um movimento de disjunção da realidade, e nos colocam em algo que é puro discurso, universo pleno unicamente das palavras que as servem de ancoradouro. Aliás, não seria demais dizer que o corpo é seu norte, como Bakhtin, coloca na palavra o peso de aglutinar sentidos.
Isto que até aqui apresentei é apenas uma das possíveis leituras de um poema que, mais do que obra aberta, é um texto construído com a lógica de um processo de tessitura de inúmeros fios a se enredar; por isso, cada laço em sua face representa também uma nova entrada de leitura, especialmente a partir de discursos diferentes de diferentes leitores.
Certamente, para a maioria dos leitores, é corpo seu norte, já pela abertura que lhe dá o título, o lerá como lírica amorosa. Trata-se também de uma leitura das mais interessantes, pois, se formos somente por este caminho, teremos de fazer uma demonstração de como Danilo Barcelos desconstrói o a linguagem típica de textos desta natureza. Absolutamente isento de chavões, apenas espalha aqui e ali algumas aberturas, tais quais o direcionamento do Eu Poético para um Outro, por meio de uso discreto e parco de pronomes. Em nenhum momento, o amor se manifesta claramente como temática do poema. Este apenas perpassa os diversos fios enredados, mais como uma relação a dois, da qual se precisa desembarcar, mas aponta sempre e necessariamente para um discurso em que o Eu prevalece, colocando-se única e inteiramente no poema, mesmo quando acena para lençóis amarfanhados, que, por si sós, não consideram a presença desse Outro. O corpo a que se refere não se acha relacionado a um pertencimento, a não ser o pronome “seu”. Os sentimentos que poderiam aflorar nos versos, de forma mais clara, jamais aparecem; em seu lugar, metáforas magníficas e apenas evocativas de possibilidades de leituras tomam o lugar de um expresso discurso amoroso.
Os versos que se seguem, são sóbrios semanticamente. Somente em pequenas coisas se percebe laivos de ressentimento, especialmente quando trata da casa como unicamente sua, sem qualquer presença, sequer de lembranças, já que ela só emerge no poema após “alicerces”. Há um novo espaço ali construído, alinhavado peça por peça pela evocação de um mundo externo, até então ausente. Aí há dor, mas contida, como contido era, quando o conheci há tantos anos.
Porém o maior sinal de contenção reside no ponto final ausente, que nos deixa a esperar mais. Não, o poeta não abandonará as palavras, apenas aponta para um novo rumo, em que o social também se trance habilmente numa superfície textual, por sobre a qual perpassem inúmeros discursos, não só com a maestria de quem sabe fazer, mas também com a ânsia de quem se renova, sem pirotecnias visuais, ou a estraçalhar o texto em avanços e recuos em nada significativos.
Todavia, tal leitura é plenamente possível, o que coloca o poeta em um patamar ainda mais alto, pois desloca de maneira absoluta e radical o tratamento dado ao “amor” na lírica brasileira, pois o objeto amoroso jamais se apresenta de forma clara e direta. E ainda menos pelo jargão sentimental daqueles que entendem “coração” como algo mais que vísceras. Este, sequer é aventado no início do poema, no qual a lírica amorosa mais se coloca. Fala-se de corpo, forma portuguesa de corpus que nos dias de hoje tomou o sentido de uma escolha, de um recorte.
 é corpo seu norte
forte imantado
braço no escuro
e o lençol leve de culpa
que nula
paira sobre a lama suada
dos corpos amados que tombam
desfeitos
sem mais cais.

Apesar da insistência da crítica em ver antropofagia em toda a produção recente de boa qualidade, não a vejo em Danilo Barcelos, nem em outros citados. Aliás, afora momentos como o de 22, o Experimentalismo e a Tropicália, não consigo identificar claramente o que seja realmente tal antropofagia, mormente minha formação acadêmica. Já, desde o romantismo, temos acompanhado um processo de disjunção entre a Literatura Brasileira e outras, iniciado este com José de Alencar e sua escrita metonímica, e Machado, com suas experiências de tipógrafo. São dois séculos de experiências diversas e um processo de miscigenação que cria algo nem coisa, nem outra; mas algo novo.
Nossas recaídas aos modelos externos estão quase sempre relacionados a momentos em que as elites sócio-econômicas, coincidem com as elites culturais. Um grupo com tal perfil tem por costume mesclar sua origem latino-americana a uma experiência europeia, talvez numa demonstração de finesse.
Mas novos poetas, como Danilo Barcelos, não possuem tais características. A vivência brasileira é plena, carregada de muros, aberturas, fragmentos, discursos múltiplos: ou seja, esse viver o Brasil não os faz nem antropófagos, nem nacionalistas ingênuos; mas intelectuais capazes de fazer da diferença um enorme depósito de novas propostas. Assim vemos é corpo seu norte.

Apresentação do Livro de Danilo Barcelos, caso aprovado pelo Editor


Verter voragens: a poética de Danilo Barcelos

 

Conheci  Danilo Barcelos duas vezes. A primeira foi em 2000, um rapaz ainda muito moço, a cursar a disciplina de Teoria da Literatura, na Universidade Federal de Ouro Preto. Não chamava a atenção unicamente pelo porte e simplicidade, mas também pela excelência de sua produção acadêmica. Também sua disposição para auxiliar o grupo do Centro de Estudos Literários Luso-brasileiros era notável, e ,em tais tarefas esbanjava simpatia, com seu jeito de menino crescido por demais e muito cedo. De resto, não se diferenciava em nada dos colegas de turma. Nesse tempo, jamais me apresentou texto qualquer, para uma avaliação, como faziam tantos outros. Talvez por não se achar pronto para isso (como se um dia estejamos prontos), talvez por timidez.

`                              Conheci Danilo pela segunda vez em 2015, quando nos reencontramos virtualmente, na internet. Subitamente, ele me enviou um anexo denominado Tear de Ondas. Pasmo, espanto, prazer me tomaram imediatamente. O que via diante de mim era um texto pronto e publicável, e, mais do que isso, uma experiência de leitura absolutamente nova.

 Durante anos, comentávamos, o Prof. Marcus Vinícius de Freitas e eu, que a poesia brasileira estava carente de uma radical renovação. Uma nova sintaxe, uma nova forma, um conteúdo renovador. E, de repente, anos depois, vindo de alguém inesperado, eu estava diante de tudo aquilo que preconizávamos. Tear de Ondas não se limita a um exercício de imagens. O texto ondula em consonância com o campo semântico que evoca. Aquilo que poderia acabar em simples melopeia, rompe com a lógica de boa parte da poesia atual, que busca em estados mentais modificados um cantar ilógico e imprudente.

Não. Aquilo que eu via era uma superfície textual fluente e notavelmente agradável ao ouvido, flutuando e correspondendo ao com o oscilar de um mar de palavras. Como verdadeiro tear estético, entretecia um emaranhado de discursos, com tal habilidade, que às vezes deixávamos de estar conscientes de que aquilo que líamos era algo escrito com segurança, arquitetado com maestria, fazendo uso das mais finas técnicas literárias. Ali estava um exemplo perfeito da renovação que procurávamos.

Mas, pareço me esquecer de que não é Tear de Ondas que apresento. Nada disso, a obra de um autor está intrinsicamente relacionada a outras, especialmente quando são muito próximas esteticamente, ou rompem com um padrão. No caso de é corpo seu norte, Danilo Barcelos faz ambas as coisas e volta à poesia com o que tem de melhor em recursos fônicos, mas avança sensivelmente com uma sintaxe enlouquecida, mas estranhamente bela e um uso de imagens completamente renovador. é corpo seu norte, assim mesmo, em minúsculas, parece provocar ou demonstrar como se realmente faz  poema maiúsculo. Como já disse, há muito, nós, os mais velhos, procuramos uma sintaxe, que os novos tentam, mas nada mais fazem que repetir  22.  Danilo a encontrou, como demonstra intensamente este pequeno trecho: “ assentar uma casa quando não mais/e/perceber que a casa é um rio inteiro.” Outros exemplos mais radicais pululam pela obra.

O texto é curto, mas denso, quase enigmático, ao mesmo tempo preciso nas metáforas. Desdenha de quase todos os recursos da poética tradicional para criar algo seu. Profundo e ao mesmo tempo fluente. Trata-se de um livro de um poema só, mostrando uma maturidade imensa, não somente para sua idade, como também para seu contexto. é corpo seu norte  é ouro puro, um exemplo de que nem tudo ainda foi feito na Literatura Brasileira. Destaca-se na comissão de frente da nova poesia, especialmente em um momento em que a mesma tem andado muito prosaica.  Danilo Barcelos  é algo diferente, como se palavras soltas e fluidas saíssem de sua boca, mas de forma ora conjuntiva, ora disjuntiva, mas sempre reflexiva: um pensar sobre si mesmo e sobre os outros. Textos assim muitas vezes soam insólitos, ou pouco trabalhados por falso poeta, desconhecedor do que realmente é poesia. Mas não nos esqueçamos que o autor é doutor em literatura. Em condições semelhantes, são poucos seus pares, e cito como exemplo Dirlenvalder Loyolla, que também está no prelo da Editora Kazuá.

Danilo Barcelos não escreve, verte palavras, jorra sentidos.  Enigmático, mas saborosamente legível, pois seus versos passeiam por temas e assuntos encontráveis em outros poetas (de seu nível, diga-se de passagem). Enigmático, mas saborosamente relido em todas as suas ambiguidades. A primeira delas diz respeito a uma dúvida, a respeito daquilo que há de se fixar em nossa memória, coisa esta que talvez nem o autor tenha uma resposta perfeitamente admissível: trata-se de uma nebulosa de reflexões, ou um intrincado desenrolar de uma lírica amorosa? A resposta seria: ambas. Isto porque um Outro se insinua no texto (já em seu título), mas não vem acompanhado de adjetivos ou portos de ancoragem que justifiquem tal interpretação, pois não é de amor que se fala, mas de corpos que se encontram  numa fala muda, feita de gestos, de encontros e desencontros. Apresenta o Outro, como um desdobramento de si mesmo, que se enrosca em lençóis amarfanhados, mas não coloca ali os indícios de uma presença que não seja sua experiência do toque, em que o interlocutor não se manifesta, identificado apenas por pronomes, no plural. Em princípio, sequer estes, mas um ambíguo “seu”:

é corpo seu norte

forte imantado

braço no escuro

e o lençol leve de culpa

que nula

paira sobre a lama suada

dos corpos amados que tombam

desfeitos

sem mais cais.

 

Tal citação poderia nos deixar certos de que se trata de uma lírica amorosa hermética, lúdica ou pudica. Mas outros versos nos dão uma dimensão maior do ser que divide o leito, mas sem adjetivá-lo, deslocando para coisas, objetos, que arrastam ainda mais para longe de um jargão amoroso, tornando o poema um porejar de experiências com discursos amorosos absolutamente inusuais:

é corpo seu norte

feito corte com faca de cozinha

na parte baixa da língua

onde lambe-se o nome

velho como o mundo

e ele nos engole.

 

Aparentemente,  um jorro de palavras que não se coadunam entre si, os versos dizem mais exatamente por isso. Não se trata unicamente de uma metáfora, ao estilo oswaldiano, mas de uma condensação delas. Vocábulos aparentemente incongruentes,alojam-se nos lugares certos e sintaticamente precisos, mesmo quando justapõe palavras diferentes ou até antagônicas numa mesma função sintática, como se nos compelisse a adentrar o poema, ao tentarmos decidir o impasse com a escolha de uma única e aparentemente disjuntiva, semanticamente. Aparentemente, pois o construto poético nos leva a uma experiência inédita, em que os sentidos se amarram quase todos, ficando fora unicamente aquilo que nunca se diz: o nome. Apenas se insinua, numa citada inicial, que parece apontar para a vogal “e”, repetidamente isolada, só, num inteiro verso. Assim usada, ultrapassa sua função de conjunção aditiva e torna-se reflexiva, pois funde versos díspares, num processo de condensação espelhada, em que a superfície irregular do espelho ao mesmo tempo reproduzisse algumas imagens e distorcesse outras.

Porém não nos esqueçamos de que a elisão de um nome é justamente enunciada já no início do poema, que, não apenas nos nega uma imagem de um segundo ser, como também implica alusivamente ao nome do poema, aparentemente incongruente:

 

é corpo seu norte

agulha de bússola

aponta o dentro

a fundo e fundo

no fundo que

enfim

é confuso

cheio de rotas curvas

em mapa não dedilhado.

 

Note-se que a repetição, apesar de estilisticamente rica, não paira aí unicamente como enfeite. Um pleonasmo a mais.  A agulha de bússola, transgredindo sua utilidade, não aponta, em verdade, Norte algum, mas volta-se para o corpo, figura central de busca, e ao invés de sugerir caminhos viáveis, aponta para o fundo, ou seja, um centro, que não marca um ponto, mas abre-se para diversas interpretações, ao encontrar rotas curvas, estas em mapas não dedilhados, ou seja, a percorrer o vazio. O Norte talvez seja o aqui e agora do encontro, em períodos que se iniciam em minúsculas e terminam em um ponto. Não haveria aí a menção de uma intensa solidão a dois, em que o Outro se fixa no corpo físico, enquanto outro se debate em um corpus mental?

Um poema iniciado em maiúsculas demarca uma autoria e a exposição de uma matéria completa. Já aquele que irrompe minúsculo, ao invés de negar uma autoria, ainda a demarca ainda mais, pois denuncia a interceptação de um fio de texto ou de discurso que pairava solto, ou abruptamente interrompido. Antes da ausência do texto em maiúsculas nada há, além de uma constelação de ideias de um poeta, ainda não enunciadas. Ao optar pelas minúsculas, Danilo Barcelos assume claramente a existência de um texto não dito, que além  de demarcar um vazio, desfia ou recolhe uma ponta solta, aqui e ali, e lhe dá continuidade.

Em “mapear o norte”, esta voz que emerge de um corte parece-nos, em princípio, pertencer ao próprio poeta, ou ao seu interlocutor, pois a temática esbarra sempre em um lírico introspectivo, que, verdadeiramente demarca uma posição. Ali está a bússola à procura do aparentemente inatingível, pois ao apontar para o fundo, deixa de possuir a função de indicar caminhos, e se faz simplesmente de um vazio que mergulha cada vez mais fundo (aliás em um belíssimo pleonasmo impregnado de assonância) e, ao invés de se transformar em um ponto, abre-se, alarga-se, já anunciando a intenção da apropriação de um discurso já pré-existente:

 

é confuso

cheio de rotas curvas

em mapa não dedilhado

 

Seguir rotas curvas e dedilhar mapas desconhecidos torna-se sua tarefa, aliás, bem demarcada em “mapear o norte”. Trata-se de uma tarefa perigosa, pois impõe sacrifícios e a vontade extrema de buscar algo que ali não está e nunca esteve:

 

é corpo seu norte

feito corte com faca de cozinha

na parte baixa da língua

onde lambe-se o nome

velho como o mundo

e ele nos engole.

 

Não preciso dizer aqui que todo poeta está em busca incessante de um nome, o Verbo sagrado que abre todas as possibilidades de atingir a plena potência da arte extrema e a perfeição estética plena. Os sacrifícios são muitos nessa caminhada, pois achá-la não depende de buscá-la no mundo, mas no próprio corpo, mutilado , no sangue que não engolimos, mas é ele que nos engole. Talvez seja uma ligeira impressão sem valor, mas vale lembrar que “engole” tem semelhança fônica com Golen, que, em forma de palavras, esteve sempre presente nos mitos criacionistas. Mas estaríamos fechando um texto que, por um lado, metalinguísticamente, busca a expressão final e perfeita de si mesma; e por outro, desloca sensações, vocábulos que remetem a um vazio de um início inexistente (a ausência da maiúscula, mas um ponto final definitivo).

Em “outrem”, Danilo Barcelos despede-se do fio que conduzia à sua trilha (ou norte) e inicia o trabalho de entrelaçar (ou melhor, tecer) fios soltos, atar pontos, enlaçar linhas de modo que elas se transforme em tecido/texto (palavras de mesma etimologia), ou talvez seja melhor utilizar textura, pois esta remete a algo mais denso, mais áspero, em seus desenhos em relevo. Nesse ponto, o poeta já nos inteirou de que a estrada será difícil. Para recuperar um nome antigo é preciso, não só encontrá-lo no corpo, no corte sob a língua, mas lançar mão de outros textos interrompidos ou cortados e lhes devolver a voz, ao, com fina agulha, entretecê-los em uma superfície linguística capaz de ser percorrida pelos mais diversos discursos. Mas a busca do poema lírico perfeito é trabalhosa e precisa de que se dispa das velhas enunciações e se busque em laços inusitados, a ponto de, às vezes, perdermos o pé e nos deixarmos levar, não somente por uma linguagem inovadora, mas por espessas neblinas de vocábulos que parecem nada dizer, mas que tomados em conjunto brilham no céu claro e aberto do papel em branco.”

“Outrem” é o início de uma viagem verbal. Tendo já escolhido seu norte, o poeta agora exerce a função do tecelão, que nela busca mais pontas soltas, prenhes de silêncios sinuosos. O Outro ainda perdura como se, em termos de “eu poético”, a bússola aponta apenas em direção do ser que faz de seu corpo seu norte. Na disjunção de seres, o poeta desembarca de um trem ambíguo, que está em movimento no ato, e parado no outono, ou vice-versa. Este “Outrem”, fora do “eu que enuncia”, que se evidenciava em pronomes e indícios, agora é falta; um trem do qual se despede, como um passageiro que se funde com o trem, pelo simples fato de ser esse, uma metáfora, carregada de componentes líricos, que não carrega chavões, mas o resultado do da relação de dois seres, da qual um agora se despede:

 

passageiro de mim desembarco

desse trem só movimento

no outono estacionado pleno em nada.

 

teço o trilho azul que segue além

ao som de um rio decomposto

coberto de anilina e falsa forma.

 

Metalinguisticamente, é a desconfiança no poder evocativo da palavra que se faz sentir, pois o poeta vacila (mesmo que retoricamente) em retomá-las, num descrer doloroso por antecipar a ausência de um encontro da essência lírica (busca e decepção de todo poeta, por sua inexistência) Nos versos seguintes, também, o apear do comboio se apresenta, como se discurso amoroso e poesia, nesse caso, fossem atrelados e, portanto, similares. Mas, por um pequeno detalhe, quase insignificante, isso não acontece: ao final da última estrofe, não há ponto final:

nesta casa

assento os verbos que não sei

e decanto os sons que desconheço

para saciar uma outra sede

que se entende no fim

daquilo que não tento interpretar.

 

saio, enfim, das palavras

para pisar o solo de mim

chão onde pouso todos os destinos

 

Sei do risco que corro, ao propor duas leituras simultâneas, mas creio que devo me atrever, pois o poema, como O Grito, de Munchen, exige especulações mais fundas, como aquela úvula imensa e se atrever a vir ao primeiro plano.

Nesse poema, a úvula se apresenta como ausências, silêncios. Como anteriormente fizera, Danilo Barcelos forma laços de linhas tão bem tecidos que parecem se fundir. passageiro e trem formam uma unidade. É preciso descer desse vagão, ao mesmo tempo em movimento e estacionário, para tecer novos trilhos, que devem se despedir daquilo que não o levará a nada, ou seja, o artificialismo de um rio que foi límpido um dia, mas que agora, além de decomposto, ainda traz a falsa cor, tanto quanto é falsa a forma. Reconhece no trem a peça pulsante de sentido, mas uma máquina adiada. E vai além:

 

condenso o trilho azul transpondo a linha

que divide o riscado das palavras

para trazer em mim o mesmo

 

que perdido já é falta.

na paragem deste trem, som do vazio,

soltam ao ar as folhas deste outono

 

lugar que marca a ida e desencontros

na constelação contrária de um lago

onde miro o que em mim é outro dia

 

Trilhos são palavras, que nada trarão nada a não ser a si mesmos. Neste trecho, com belíssimos enjambements, coloca-se em um outono sombrio, que ainda tem muito chão para chegar à plenitude da luz. Mas não é estação de ano de que fala, mas de um lugar, onde se encontra, onde fios se atam e desatam, mas pela ilusão do reflexo fazem-no mirar aquilo que ainda não é o agora, mas um dia vindouro. Como se pode observar, o tecelão já ata e desata imagens e metáforas, mais do que as lancinantes de Oswald, pois as mesmas em nada se ancoram em um mundo externo, mas criam nebulosas de sentidos, que nos levam a um movimento de disjunção da realidade, e nos colocam em algo que é puro discurso, universo pleno unicamente das palavras que as servem de ancoradouro. Aliás, não seria demais dizer que o corpo é seu norte, como Bakhtin, coloca na palavra o peso de aglutinar sentidos.

Isto que até aqui apresentei é apenas uma das possíveis leituras de um poema que, mais do que obra aberta, é um texto construído com a lógica de um processo de tessitura de inúmeros fios a se enredar; por isso, cada laço em sua face representa também uma nova entrada de leitura, especialmente a partir de discursos diferentes de diferentes leitores.

Certamente, para a maioria dos leitores, é corpo seu norte, já pela abertura que lhe dá o título, o lerá como lírica amorosa. Trata-se também de uma leitura das mais interessantes, pois, se formos somente por este caminho, teremos de fazer uma demonstração de como Danilo Barcelos desconstrói o a linguagem típica de textos desta natureza. Absolutamente isento de chavões, apenas espalha aqui e ali algumas aberturas, tais quais o direcionamento do Eu Poético para um Outro, por meio de uso discreto e parco de pronomes. Em nenhum momento, o amor se manifesta claramente como temática do poema. Este apenas perpassa os diversos fios enredados, mais como uma relação a dois, da qual se precisa desembarcar, mas aponta sempre e necessariamente para um discurso em que o Eu prevalece, colocando-se única e inteiramente no poema, mesmo quando acena para lençóis amarfanhados, que, por si sós, não consideram a presença desse Outro. O corpo a que se refere não se acha relacionado a um pertencimento, a não ser o pronome “seu”. Os sentimentos que poderiam aflorar nos versos, de forma mais clara, jamais aparecem; em seu lugar, metáforas magníficas e apenas evocativas de possibilidades de leituras tomam o lugar de um expresso discurso amoroso.

Os versos que se seguem, são sóbrios semanticamente. Somente em pequenas coisas se percebe laivos de ressentimento, especialmente quando trata da casa como unicamente sua, sem qualquer presença, sequer de lembranças, já que ela só emerge no poema após “alicerces”. Há um novo espaço ali construído, alinhavado peça por peça pela evocação de um mundo externo, até então ausente. Aí há dor, mas contida, como contido era, quando o conheci há tantos anos.

Porém o maior sinal de contenção reside no ponto final ausente, que nos deixa a esperar mais. Não, o poeta não abandonará as palavras, apenas aponta para um novo rumo, em que o social também se trance habilmente numa superfície textual, por sobre a qual perpassem inúmeros discursos, não só com a maestria de quem sabe fazer, mas também com a ânsia de quem se renova, sem pirotecnias visuais, ou a estraçalhar o texto em avanços e recuos em nada significativos.

Todavia, tal leitura é plenamente possível, o que coloca o poeta em um patamar ainda mais alto, pois desloca de maneira absoluta e radical o tratamento dado ao “amor” na lírica brasileira, pois o objeto amoroso jamais se apresenta de forma clara e direta. E ainda menos pelo jargão sentimental daqueles que entendem “coração” como algo mais que vísceras. Este, sequer é aventado no início do poema, no qual a lírica amorosa mais se coloca. Fala-se de corpo, forma portuguesa de corpus que nos dias de hoje tomou o sentido de uma escolha, de um recorte.

 é corpo seu norte

forte imantado

braço no escuro

e o lençol leve de culpa

que nula

paira sobre a lama suada

dos corpos amados que tombam

desfeitos

sem mais cais.

 

Apesar da insistência da crítica em ver antropofagia em toda a produção recente de boa qualidade, não a vejo em Danilo Barcelos, nem em outros citados. Aliás, afora momentos como o de 22, o Experimentalismo e a Tropicália, não consigo identificar claramente o que seja realmente tal antropofagia, mormente minha formação acadêmica. Já, desde o romantismo, temos acompanhado um processo de disjunção entre a Literatura Brasileira e outras, iniciado este com José de Alencar e sua escrita metonímica, e Machado, com suas experiências de tipógrafo. São dois séculos de experiências diversas e um processo de miscigenação que cria algo nem coisa, nem outra; mas algo novo.

Nossas recaídas aos modelos externos estão quase sempre relacionados a momentos em que as elites sócio-econômicas, coincidem com as elites culturais. Um grupo com tal perfil tem por costume mesclar sua origem latino-americana a uma experiência europeia, talvez numa demonstração de finesse.

Mas novos poetas, como Danilo Barcelos, não possuem tais características. A vivência brasileira é plena, carregada de muros, aberturas, fragmentos, discursos múltiplos: ou seja, esse viver o Brasil não os faz nem antropófagos, nem nacionalistas ingênuos; mas intelectuais capazes de fazer da diferença um enorme depósito de novas propostas. Assim vemos é corpo seu norte.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Do Livro O Centro do Círculo


Aos Infernos

 

Desço mais um passo, Beatriz,

em direção ao nada. Na treva

a única luz que vejo são as imagens

que se partem em fragmentos hostis,

com farpas, espinhos e voragens,

que seguem a torrente que me leva.

 

Já vislumbro o barqueiro sombrio,

à espera, com os remos aos ombros,

enquanto alucino passados de brilhos,

flocos leves, efêmeros, entre escombros.

Estranho passageiro sou. No úmido frio

da cratera em que entro ouço ainda estribilhos.

 

São ecos, talvez, do passado, d'antanho,

em que a dor se assemelhava à alegria

e o canto feliz de então, agora parece

lamento e angústia, lamento tamanho,

que a memória turva me envia

para alentar algum resto, aquele que perece.

 

Entre os dedos carrego a moeda,

cunhada com o metal da indiferença.

Pagamento mesquinho, para a travessia

tão esperada, ansiada após a queda

nas sombras vazias, sem esperança,

nem mesmo de um beijo em lápide fria.

 

Beatriz, ouço Cérbero já furioso

com a lenta caminhada, após o desembarque

titubeante. Falta-me a coragem, ou esperança

de recuperar, mesmo que ansioso,

o brilho de um olhar vacilante,

ou o falso amor de uma velha criança.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O nariz de um homem ridículo



O nariz de um homem ridículo
Para Aníbal Machado

(...) deixou cair os braços, começou a esfregar os olhos e a palpar: um nariz, realmente um nariz! E ainda por cima pareceu-lhe não de todo estranho. O horror se refletiu no rosto ... (Nicolai Gógol)

            Decepar uma parte de si mesmo? Sem dúvida era uma decisão drástica para quem vivera até então acomodado a sua vidinha sem graça e ao corpo mirrado. Nunca lhe incomodaram os ombros curvos e estreitos, a calvície precoce, nem as pernas finas a sustentar um tronco insignificante. Ele sabia a razão de sua inquietação. Atravessou a sala e olhou para o parque, em desalinho, carregado de folhar murchas e putrefatas. Fora seu último dia de trabalho. Explicara aos colegas que havia recebido uma herança deixada por uma tia quase esquecida. Embora modesta, lhe daria os rendimentos para uma aposentadoria humilde. A mentira o incomodava, era inexperiente na arte de mentir. Mas tinha que dar uma explicação aos colegas. Um funcionariozinho subalterno, sem grandes qualificações, surrado em seu velho terno de todos os dias, não podia se dar ao luxo de pedir demissão assim tão repentinamente numa época de desemprego. Mas era impossível contar-lhes a verdade: não suportava mais os olhos se outros sobre seu nariz.
            Até então, sequer notara aquele apêndice enorme se sobressaindo em meio aos olhos miúdos e meio opacos.  Ao fazer a barba, porém (lembra bem o dia!) deparara com aquela excrescência obliterando-lhe o olhar de soslaio. Desde então, não passava um minuto sem notar a ponta rotunda de seu protuberante nariz.
            Na rua, não se misturava mais à massa anônima como antes. Se, até ali, a multidão era um jardim perfeito pelo qual atravessava seguro e inócuo, agora, naquele último mês, sentia a sensação perversa e estranha de ser observado a cada passo. De qualquer maneira levaria a cabo sua intenção fosse qual fosse o preço. A força desta convicção  deixava-o intrigado; a decisão era inabalável, mas sua mente inquisidora não atinava para uma justificação razoável para o ato.
            Fora de casa, não levava mais seu corpo, mas era carregado pela imensa protuberância nasal, sempre mais à frente, como uma trombeta do apocalipse. Na praia, senti-o queimar-se, avermelhar-se e, aos poucos, tomar todas as cores de seu torso, não somente do rosto, que se amiudava ainda mais.
            Deixou a barba crescer, mas o matagal inóspito e rebelde em nada contribuía para sua aparência. Pelo contrário, o bigode ralo e negro ressaltava ainda mais o órgão estranho, frisava os nódulos desarmoniosos e avivava as espinhas que não cessavam de brotar por toda parte, como se o estúpido ainda quisesse crescer um pouco mais. Cortou a barba, mas não o ressentimento.
            Passou a faltar ao serviço, e quando batia o ponto trancava-se num mutismo sombrio. Na tela do computador via sempre o reflexo refletido. Lá estava seu inimigo, seu algoz, que agora não apenas se mostrava, mas parecia adquirir vida. Em fungadelas e espirros, esforçava-se para esboçar um sorriso irônico pelas narinas.
            Seria, talvez, que depois de quase 40 anos de vida precisava provar a si mesmo, um borra-botas, que ele era alguém; que era capaz de ter coragem e decisão, cometendo um ato tão terrível e irrevogável. Apanhou a faca.